Autor: Nilvio Pessanha Pinheiro

Grande Sertão: a ousadia e a teatralidade de Guel Arraes

O filme do diretor pernambucano estreou no dia 06 de junho nos cinemas brasileiros O cinema, nos seus primórdios, ficou bastante atrelado ao teatro. Por anos, a encenação de muitos filmes era puramente teatral. O tempo passou e o cinema foi buscar sua própria identidade, … Continuar lendo Grande Sertão: a ousadia e a teatralidade de Guel Arraes

Fúria Primitiva: Influência de John Wick, herança indiana e luta de classes

Logo que as sequências de ação de “Fúria Primitiva” começam a se intensificar, fica clara a influência da franquia de John Wick. É só notar bem as coreografias de luta ou o uso de neon nas cenas para perceber essa inspiração nos filmes do personagem … Continuar lendo Fúria Primitiva: Influência de John Wick, herança indiana e luta de classes

“Feriado Sangrento”: o slasher para além de sangue e sustos

Novo filme de terror do diretor Eli Roth, que já está em cartaz nos cinemas, usa da estrutura típica de um slaher movie para fazer críticas ao consumismo desenfreado

Por Nilvio Pessanha

O filme de slasher é uma obra onde um assassino persegue e mata um grupo de pessoas usando, geralmente, um objeto cortante que o caracteriza – machado, serra elétrica, faca etc. As motivações são variadas, mas geralmente estão ligadas a um evento traumático ocorrido no passado – como o afogamento de Jason Voorhees, da franquia de Sexta Feira 13, no lago do acampamento Crystal Lake, por exemplo. O slasher movie, como subgênero do cinema de horror surgiu nos anos 70 do século passado como filmes como A Mansão da Morte (1971) e O Massacre da Serra Elétrica (1974).

De lá para cá, o slasher ganhou força entre os fãs do horror e vários filmes com personagens emblemáticos. Porém muitos dos filmes mais recentes trazem pouca coisa de novo ao subgênero, além de mostrarem tramas totalmente descoladas de como o filme de slasher representa a sociedade, aspecto que podemos perceber em muitas obras desse segmento do cinema de horror. O slasher movie já nasceu com essa característica de refletir problemas e conturbações sociais da sociedade estadunidense, haja vista que o seu surgimento reflete um fatalismo e um medo expressos por um período de pós e entre guerras – Vietnã, Guerra Fria. Porém, com a cristalização da estrutura e de elementos característicos do gênero, vemos cada vez mais obras que se distanciam desse aspecto sócio-político do slasher.

 Agora chega aos cinemas “Feriado Sangrento”, o mais novo filme de Eli Roth, diretor de filmes como “O Albergue” (2005) e “Bata Antes de Entrar” (2015). O filme mostra um grupo de pessoas que se envolvem num grande incidente no dia do feriado do Dia de Acão de Graças dentro de uma loja varejista. Um ano depois do ocorrido, um assassino serial surge matando as pessoas envolvidas. Eli Roth, que além de dirigir também escreveu o roteiro junto com Jeff Rendell, não traz necessariamente algo de novo ao slasher, mas usa da batida estrutura narrativa do subgênero para abordar a questão do consumismo desenfreado dos nossos dias. Logo no início do filme vemos duas famílias se preparando para o jantar do Dia de Ação de Graças. A família do dono da principal loja da cidade, a Right Mart, e a família do gerente da loja que tem que deixar seus familiares em meio à celebração para organizar a abertura do estabelecimento em plena época de Black Friday. Nesse momento Roth usa do consumismo cego, mais precisamente da horda de pessoas desesperadas para comprar, como o elemento de terror nessa situação inicial da trama. A abertura da loja sai do controle e isso resulta em pessoas feridas e mortas. Um ano se passa e vemos a cidade novamente às voltas com os preparativos para o feriado, mas com as lembranças do incidente pairando sobre a população que passa a ser atormentada por um assassino em série que começa a matar pessoas envolvidas no evento passado.

Por falar em assassino, o que é um filme de slasher sem um matador sanguinolento bem caracterizado? E John Carver é um belo exemplo de acerto na caracterização de um assassino slasher. Vestido de peregrino e usando a máscara de John Carver, uma fictícia figura histórica da cidade, o matador em série surge e vai empilhando corpos com direito a muita violência gráfica, algo que é a especialidade do diretor. Outro elemento que não pode faltar num slasher movie é uma boa final girl. E temos aqui, Jessica, uma personagem bem construída e bem interpretada por Nell Verlaque. Outra figura importante é o personagem de Patrick Dempsey, o xerife de Plymouth.

Os personagens típicos do subgênero estão lá, um esportista metido a gostosão, um nerd, o garoto esquisito, entre outros. Além de trazer uma típica trama no estilo whodunit, quetraz a ideia do “quem matou?”, também comum no subgênero, vide “Pânico”, de Wes Craven. Mas o grande mote do filme é colocar toda essa estrutura narrativa a serviço de uma crítica ao consumismo, ao que se tornou um feriado que surgiu, dentro da sociedade estadunidense, como uma data para agradecer e confraternizar em família. Porém a avidez capitalista por lucro transformou tudo em mais uma data de mais frenesi pelo consumo – não que essa data já não carregasse bastante hipocrisia, mas aqui não é o momento para debatermos sobre isso. E esse consumismo, num primeiro momento é o elemento de terror e é a causa para o surgimento do assassino. Há ainda espaço para inserir na discussão a necessidade de tudo ser filmado e viralizado, a sociedade Tik Tok. Num determinado momento do filme, o assassino fala para um dos personagens que o vídeo que ele fez das pessoas caindo, se machucando e morrendo na loja no incidente inicial, foi inspiração para também fazer lives expondo seus assassinatos.

“Feriado Sangrento” não reinventa a roda, mas pega uma roda que estava bem gasta e dá uma boa recauchutada nela. Em outras palavras, Eli Roth não chega a nos brindar com um banquete de Ação de Graças, mas faz um belo feijão com arroz com alguns bons acompanhamentos que descem muito bem.

Um sonho, um trailer, um filme

O diretor Eli Roth revelou que a ideia para o filme já havia surgido num sonho quando ainda tinha 12 anos. Essa ideia virou um falso trailer que foi exibido junto com “Grindhouse” (2007), filme de seu amigo Quentin Tarantino. E só agora realmente virou um filme com Feriado Sangrento que já está em cartaz nos cinemas nacionais.

Nilvio Pessanha é professor da rede pública, produz o podcast Cine Trincheiras e é um curioso sobre cinema, além de ser vascaíno.

Um “Napoleão” superficial

A cinebiografia de Napoleão Bonaparte, dirigida por Ridley Scott, já está nos cinemas e o filme apresenta uma irregularidade que é própria da obra do diretor.

Por Nilvio Pessanha

Ridley Scott é um cineasta experiente, com mais de 40 anos de carreira e mais de dezenas de filmes no currículo. No entanto, a experiência não o livra de uma irregularidade. Enquanto é o realizador de obras poderosas e aclamadas como “Alien, o 8º Passageiro” e “Blade Runner, o Caçador de Andróides”, também é o responsável por trazer ao mundo filmes muito menos admirados como “Êxodo: Deuses e Reis” e “Todo o Dinheiro do Mundo”. E “Napoleão”, o seu mais novo filme que está em cartaz nos cinemas, reflete parte dessa irregularidade, onde vemos aspectos de um diretor seguro, experiente e competente, aliados a muitos momentos em que surge um cineasta que comete erros que comprometem a qualidade da obra.

“Napoleão” de Ridley Scott é a cinebiografia do estadista e líder militar francês Napoleão Bonaparte que governou o país europeu de 1804 a 1814 (e por um breve período de 1815). A trama do filme tem início com os acontecimentos da Revolução Francesa que culminaram na decapitação da rainha Maria Antonieta. Logo de início já vemos algo que será flagrante no filme, uma ótima direção de arte, com uma competente recriação de época. Tudo que aparece em cena é muito detalhado e planejado dentro da ideia dessa recriação. E logo somos apresentados também ao personagem central, Napoleão (vivido por Joaquim Phoenix, falarei da atuação dele mais para adiante). Esse início, além de sinalizar um recorte histórico do filme, mostra também o cenário social e político com o qual o protagonista deverá lidar durante o discorrer do longa.

Voltando ao recorte temporal que foi feito pelo filme, numa cinebiografia, é natural que haja um recorte. São escolhas a serem feitas para retratar a vida de uma personalidade a ser cinebiografada, ainda mais se for alguém do vulto de Napoleão Bonaparte. Aqui a história não retrata a infância e adolescência do estadista francês e já inicia o filme com o protagonista com 20 anos, em 1789. Outro detalhe é que a mãe de Napoleão, que teve grande influência na sua conduta disciplinadora, só é citada nesse primeiro momento numa narração que o personagem faz numa carta ao irmão. Essa narração, inclusive, se dá por ocasião da primeira grande batalha do filme, que ocorre em Toulon. Outro ponto alto para a direção de Scott é a forma como filma as batalhas, seja ocorrendo à noite ou em meio à névoa do frio russo, tudo é feito de forma que entendamos o que está sendo mostrado em cena. A batalha entre o exército francês contra os russos e os austríacos, além de bem realizada, também mostra a competência do diretor em retratar o lado estrategista do líder militar francês.

O grande problema é que uma história bem contada precisa de mais do que boas batalhas, uma boa recriação de época, um bom recorte histórico etc. Precisa de mais elementos. Principalmente, como já disse antes, a história de alguém da envergadura histórica de Napoleão Bonaparte, e nesse momento o Ridley Scott irregular aparece. Primeiro, falta um bom desenvolvimento de personagem ao Napoleão do filme. Joaquim Phoenix está competente como sempre, mostrando momentos de um militar obstinado, um líder seguro e ambicioso, um homem inseguro e com fraquezas. Mas isso se deve mais ao trabalho do ator do que a um desenvolvimento do personagem central sendo percebido no decorrer da história. As fraquezas, as inseguranças pessoais de Bonaparte não são bem mostradas, não ficam claras o porquê delas. A maioria dos personagens que circundam o protagonista são superficiais, na verdade, com exceção da sua primeira esposa, Josephine (num bom trabalho de Vanessa Kirby), todos são superficiais. O próprio relacionamento entre Napoleão e sua primeira esposa não é bem desenvolvido. Parecem todos meio jogados.

Como meio que jogados são alguns acontecimentos históricos na tela. Em alguns momentos o filme vai pulando de um acontecimento para outro sem um encaixe narrativo adequado. Quando vemos algo diferente disso, fica nítida a diferença. Por exemplo, ao fim da batalha contra os exércitos russos e austríacos, corta para uma conversa num acordo de paz e, por fim, corta para Napoleão dançando num baile, numa festa, com Josephine. Tudo se encaixa e faz sentido narrativo. Porém em muitos outros momentos, o que vemos são passagens históricas que, como disse acima, são meio que jogadas e não têm tanta harmonia entre si.

“Napoleão” de Ridley Scott é um filme que mostra por meio da fotografia, das imagens a grandiosidade das batalhas, também, em muitos momentos, a grandiloquência e a ambição de Bonaparte; recria com competência a época retratada através de uma ótima direção de arte; tem atuações destacáveis e elogiáveis de Joaquim Phoenix e Vanessa Kirby. Entretanto não supera a batalha contra a falta de um desenvolvimento melhor da história e dos personagens. “Quer dizer então que não vale a pena ir ao cinema ver ‘Napoleão’? Você pode estar me perguntando. Vale, sim. Embora haja erros que comprometam o resultado final da obra, não deixa de ser uma experiência interessante assistir ao filme. Interessante, porém não vá pensando em ver algo épico ou memorável.

Precisão histórica

Sinceramente, é muito chata essa discussão em torno de filmes de teor histórico sobre a tal da precisão ou imprecisão histórica. Cineasta, por mais que faça pesquisa para sua obra, não é historiador. A não ser que haja algo historicamente desonesto no filme (por exemplo, se o filme de Scott mostrasse um Napoleão traidor da França, espião do exército inglês, algo assim), o cineasta deve ter compromisso primeiramente com a sua arte e com a sua obra.

Nilvio Pessanha é professor da rede pública, produz o podcast Cine Trincheiras e um curioso sobre cinema, além de ser vascaíno.