Grande Sertão: a ousadia e a teatralidade de Guel Arraes

O filme do diretor pernambucano estreou no dia 06 de junho nos cinemas brasileiros

O cinema, nos seus primórdios, ficou bastante atrelado ao teatro. Por anos, a encenação de muitos filmes era puramente teatral. O tempo passou e o cinema foi buscar sua própria identidade, sua própria linguagem. Porém isso não impediu a sétima arte de continuar estabelecendo diálogos com outras artes, como a literatura, por exemplo. Hoje é comum vermos filmes adaptando peças teatrais e obras literárias. E o diretor Guel Arraes é um grande exemplo disso. O cineasta realizou a bem-sucedida adaptação do texto teatral de Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida, em 2000, e agora estreia nos cinemas o seu mais novo filme, Grande Sertão, a adaptação do aclamado clássico de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.

Assim como na obra literária, a história do filme é narrado por Riobaldo (Caio Blat). Ele surge narrando, para um interlocutor que nunca aparece, sua trajetória, a infância, quando conheceu Diadorim (Luisa Arraes), a vida adulta como professor e sua entrada para a quadrilha de Joca Ramiro. Logo de início, percebe-se que Arraes lança mão de sua liberdade artística para ressignificar o sertão da obra de Guimarães Rosa. No filme, a história se passa numa favela de uma realidade distópica chamada Grande Sertão. Essa mudança representa uma baita ousadia, pois a transferência do cenário do sertão mineiro para uma comunidade periférica urbana poderia gerar um efeito ruim, um desalinho, uma artificialidade, mas não é o que ocorre. A mudança da violência rural para a guerra urbana funciona muito bem, principalmente aliada a outra ousadia que também poderia dar muito errado, a teatralidade presente no filme. Guel Arraes traz outro toque pessoal que é a inserção de uma estética teatral no longa. Seja nas interpretações (das quais falarei um pouco mais em seguida), seja em close-ups e planos médios para valorizar a teatralidade dessas interpretações, seja na caracterização dos cenários e também na forma como filma valorizando essa estética mais estilizada, o tempo inteiro percebemos que esse novo sertão em forma de favela virou um mar de teatralidade e bem trabalhada a serviço do filme.

Nem tudo, porém, é teatro em Grande Sertão, há muita literariedade também. O texto é muito literário, muito poético – texto que, vale lembrar, foi escrito pelo próprio diretor e também por Jorge Furtado. E mesmo dentro dessa literariedade, os diálogos são bem trabalhados, há qualidade. Por falar em texto literário, o filme traz os principais personagens do romance de Guimarães Rosa seguindo mais ou menos a mesma trajetória. E aproveito agora ter citado os personagens para voltar a falar das interpretações, é aqui que há uma certa irregularidade no filme. Enquanto vemos atuações destacáveis como a de Caio Blat, vivendo o protagonista, e de Eduardo Sterblitch, como Hemórgenes, vemos interpretações que despertam algum incômodo como a de Rodrigo Lombardi, como Joca Ramiro, e de Luisa Arraes, como Diadorim. O Joca Ramiro de Lombardi não passa a autoridade que o líder do bando deveria mostrar, acaba sendo ofuscado pela atuação de Sterblitch como Hermógenes. Já Luisa Arraes, parece demorar a entrar no personagem, as primeiras cenas em que aparece como Diadorim não são tão boas quanto as da segunda metade do filme para o final. Inclusive, toda a primeira sequência em que a atriz aparece no filme é bem ruim. Vale destaque também para as atuações de Luis Miranda, como Zé Bedelo, e de Mariana Nunes. O dilema interno de Riobaldo em relação a seus sentimentos por Diadorim é outro aspecto que poderia ter sido ainda melhor construído, melhor explorado.

Trazendo Grande Sertão: Veredas para o Grande Sertão na favela, Guel Arraes mostra que a desigualdade é fator gerador de violência em qualquer lugar, podendo ser no meio rural ou urbano. Além disso, o cineasta pernambucano mostra êxito onde muitos outros já falharam, em trazer a estética teatral para o cinema. E em Grande Sertão, Arraes ainda faz isso dialogando com a literatura de Guimarães Rosa. No fim, o diretor pode não nos entregar uma obra-prima como fez o escritor modernista, mas sua adaptação é o tipo de filme que gera discussão, seja pelas questões sociais, seja pelas escolhas estéticas do diretor. É uma obra que pode até provocar opiniões divisivas, mas dificilmente gerará indiferença.

Prêmio em festival

Grande Sertão, teve sua estreia mundial em um festival europeu, estreou na 27ª edição do Tallinn Black Nights Film Festival, na Estônia, onde Guel Arraes levou o prêmio de melhor direção.

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